Dois anos de avanços lentos e disputas judiciais marcam trajetória da reforma antimanicomial
A política de enfrentamento ao modelo manicomial no Brasil completou dois anos desde sua reestruturação mais recente, mas o balanço deste período é marcado por uma combinação de lentidão na implementação e intensa judicialização. Longe de ser uma transformação pacífica, a mudança no modelo de atenção à saúde mental do país tem enfrentado resistências institucionais, entraves burocráticos e debates acalorados tanto no campo técnico quanto no jurídico.
A proposta de desinstitucionalização — isto é, de substituir progressivamente os antigos hospitais psiquiátricos por uma rede de cuidados comunitários — avança de maneira desigual entre estados e municípios, revelando a dificuldade em articular um sistema descentralizado e ao mesmo tempo coerente com os princípios da reforma psiquiátrica brasileira, estabelecida pela Lei 10.216/2001.
A lógica da reforma e o fim dos antigos manicômios
A política antimanicomial não é nova no Brasil. Desde o início dos anos 2000, o país tem buscado reestruturar sua abordagem sobre saúde mental, priorizando o cuidado em liberdade e o fortalecimento dos serviços de base comunitária, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Esses centros oferecem atendimento multiprofissional a pessoas com transtornos mentais, tentando evitar internações prolongadas e priorizando a reintegração social dos pacientes.
A reorientação dos cuidados, entretanto, exige mais do que vontade política. É necessário orçamento, formação contínua de profissionais, articulação entre diferentes esferas de governo e — o mais difícil — uma mudança cultural dentro e fora do sistema de saúde. Ainda assim, os avanços são visíveis: desde o início da reforma, houve uma expressiva redução do número de leitos em hospitais psiquiátricos e uma expansão dos serviços comunitários.
Contudo, o ritmo das mudanças nos últimos dois anos tem sido mais lento do que o esperado.
Descompasso entre metas e realidade
Ao longo desse biênio, diversos programas relacionados à política de saúde mental foram retomados ou ampliados, incluindo a tentativa de reverter medidas anteriores que privilegiaram a lógica hospitalocêntrica. Apesar disso, o que se observa é uma implementação travada por uma série de fatores: baixa execução orçamentária, escassez de profissionais especializados, resistência de gestores locais e, principalmente, disputas judiciais.
Algumas ações movidas por entidades médicas, conselhos profissionais ou familiares de pacientes têm questionado a viabilidade e a segurança dos serviços substitutivos, solicitando, em muitos casos, a manutenção de internações de longa duração. Em resposta, o Ministério da Saúde e órgãos vinculados à política de direitos humanos têm defendido, nas instâncias judiciais, a primazia da abordagem psicossocial, que prevê o acolhimento e o tratamento em liberdade.
Esse embate tem gerado decisões judiciais conflitantes, atrasando a consolidação de diretrizes claras e nacionais para o cuidado em saúde mental.
Judicialização crescente e seus efeitos
A presença do Poder Judiciário na condução da política antimanicomial tem crescido, e isso reflete tanto a politização do tema quanto as falhas na articulação federativa. Estados e municípios nem sempre cumprem as diretrizes nacionais, o que força usuários, defensores públicos e o próprio governo federal a buscarem respaldo jurídico para garantir ou contestar ações.
Essa judicialização, no entanto, também tem um custo. A depender das decisões tomadas, políticas públicas desenhadas com base em evidências e diretrizes técnicas acabam sendo substituídas por interpretações legais que nem sempre consideram a complexidade do cuidado psicossocial.
Ao mesmo tempo, há um déficit de consenso no interior da própria sociedade sobre como devem ser tratados os transtornos mentais graves. A cultura do isolamento, do estigma e da exclusão ainda é forte em muitos contextos, o que reforça a demanda por soluções imediatistas, como a internação forçada.
Avanços tímidos e resistências estruturais
Mesmo com todas as dificuldades, a política antimanicomial não retrocedeu completamente. Foram criadas novas unidades de CAPS, e programas como o “Consultório na Rua” e os Serviços Residenciais Terapêuticos continuaram sendo apoiados. Além disso, houve ações de formação para profissionais da saúde e campanhas públicas que buscam sensibilizar a população sobre os direitos das pessoas com transtornos mentais.
Mas o cenário ainda é de resistência estrutural. Em muitos estados, hospitais psiquiátricos continuam sendo os principais equipamentos disponíveis. A falta de recursos e de gestão qualificada agrava a situação. Gestores municipais, muitas vezes, não aderem completamente à política antimanicomial por falta de conhecimento técnico ou por receio de enfrentar pressões políticas locais.
O desafio da continuidade
A consolidação de uma rede psicossocial efetiva depende de continuidade e comprometimento. A política antimanicomial precisa ser tratada como uma questão de Estado, e não apenas de governo. A cada troca de gestão, o risco de desmonte ou de paralisação se intensifica, minando os esforços anteriores.
Além disso, é essencial fortalecer o papel da comunidade, da família e dos próprios usuários na construção dessa nova lógica de cuidado. A escuta ativa, o respeito às diversidades e o combate ao preconceito são elementos centrais para que a reforma psiquiátrica não se transforme apenas em uma mudança formal, mas em uma transformação real nas vidas das pessoas atendidas.
Conclusão
Dois anos depois de seu relançamento, a política antimanicomial brasileira caminha lentamente, enfrentando entraves históricos e novos desafios jurídicos. Ainda que a lógica da desinstitucionalização continue sendo o norte da política pública, sua execução esbarra em velhas resistências, na lentidão administrativa e no peso crescente da judicialização.
Sem uma articulação mais efetiva entre União, estados e municípios, e sem o fortalecimento dos serviços comunitários, o risco é de que a política de saúde mental perca força e volte a depender dos antigos paradigmas manicomiais — exatamente aqueles que a sociedade brasileira vem tentando superar há décadas. O futuro do cuidado em saúde mental no Brasil dependerá da coragem institucional para sustentar a mudança, mesmo diante das pressões contrárias.