Anistia, polarização e a “desanálise”: o que o Datafolha revelou sobre o Brasil político
O mais recente levantamento do Datafolha trouxe um retrato que surpreendeu parte da classe política e de setores da imprensa: a narrativa da “polarização absoluta” entre lulistas e bolsonaristas não explica mais, sozinha, o humor da sociedade. O instituto mostrou que, em meio a um debate sobre anistia e às consequências das últimas decisões judiciais envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro, a opinião pública se apresenta mais complexa, menos binária e, sobretudo, resistente a simplificações.
A quebra da narrativa da polarização
Por anos, construiu-se no Brasil a ideia de que o eleitorado estaria rigidamente dividido em duas metades inconciliáveis, cada uma orbitando em torno de Lula ou Bolsonaro. O levantamento, no entanto, revelou que a realidade é menos linear: uma parcela significativa da população não se alinha totalmente com nenhum dos polos. O que antes era visto como “zona cinzenta” ou “indecisão” começa a ganhar contornos de terceira força difusa, mais preocupada com a vida prática — inflação, emprego, segurança — do que com disputas ideológicas.
Essa percepção desmonta o discurso político e midiático que tenta reduzir todas as análises ao jogo de soma zero entre petistas e bolsonaristas. A pesquisa sugere que, para além da polarização, há uma cristalização da desconfiança em relação às instituições e um desejo difuso de estabilidade, ainda que contraditório.
A questão da anistia
O debate sobre a possibilidade de anistia para os investigados e condenados dos atos de 8 de janeiro se tornou um termômetro perfeito para medir os humores nacionais. O Datafolha apontou que, embora exista rejeição majoritária à anistia irrestrita, a sociedade não se divide apenas entre “punir todos” e “perdoar todos”. Muitos entrevistados expressam posições intermediárias: alguns defendem punições mais brandas, outros pedem diferenciação entre lideranças e manifestantes comuns.
Isso mostra que o público não opera sob a lógica binária que muitos analistas utilizam. A chamada “polarização” se revela, assim, mais um atalho interpretativo do que um reflexo fiel do país real.
A cristalização da “desanálise”
A insistência em enxergar todos os fenômenos pela lente da polarização acabou gerando o que alguns estudiosos chamam de “desanálise”: interpretações que parecem sofisticadas, mas que, na prática, empobrecem o debate público. Ao reduzir a sociedade a dois blocos estanques, deixa-se de compreender a multiplicidade de interesses, angústias e contradições que formam o eleitorado brasileiro.
O Datafolha expôs esse problema. A pesquisa mostrou que existe cansaço com a retórica do confronto permanente, e que setores da população já não se reconhecem nem como parte de uma “resistência” nem de um “bolsonarismo”. O que aparece é um desejo por alternativas, ainda que fragmentadas.
O desafio para a política
A principal consequência prática desse cenário é que partidos e lideranças terão de lidar com um eleitorado menos previsível. A retórica inflamada que funcionava em 2018 e 2022 pode não ter o mesmo efeito em 2026. Se a polarização perde força explicativa, surgem brechas para discursos de mediação, pragmatismo e foco em resultados concretos.
Para o governo, o desafio é consolidar apoio sem depender apenas do antagonismo a Bolsonaro. Para a oposição, a dificuldade está em entender que a mobilização pela raiva ou pelo ressentimento já não mobiliza com a mesma intensidade.
Um país mais complexo do que parece
O que o Datafolha escancarou é que o Brasil real é mais ambíguo e multifacetado do que o Brasil das análises de redes sociais e de programas de televisão. A “polarização” continua existindo, mas não dá conta de explicar sozinha as tensões políticas e sociais do presente. A cristalização da “desanálise” — insistir em uma explicação única para fenômenos múltiplos — pode ser um dos maiores entraves para compreender o futuro.
No fim, o instituto mostrou que a sociedade não está paralisada entre dois polos. Ela se movimenta, reconfigura opiniões e busca respostas para problemas práticos. A política que insistir em ignorar essa complexidade corre o risco de falar sozinha, enquanto a maioria segue sua vida em outra direção.