Por que o setor elétrico não consegue lidar bem com seus próprios riscos
O setor elétrico brasileiro enfrenta uma série de desafios estruturais que dificultam sua capacidade de gerenciar riscos de curto, médio e longo prazo. A aparente “incapacidade” de lidar com crises não é por falta de recursos ou tecnologia — envolve gargalos regulatórios, contradições no modelo tarifário, limitações operacionais e incerteza climática. Abaixo, analiso os principais motivos para esse desequilíbrio e por que ele persiste.
Principais razões para a fragilidade do setor elétrico
1. Crise hídrica e vulnerabilidade das hidrelétricas
Grande parte da matriz elétrica do Brasil depende de hidrelétricas. Porém, secas prolongadas têm afetado reservatórios, reduzindo a geração e aumentando a pressão sobre fontes térmicas mais caras. Esse risco climático não é novo e já foi identificado por especialistas: a “garantia física” das usinas (uma estimativa da geração que elas podem fazer de forma confiável) não foi revisada de modo consistente, o que cria uma falsa sensação de segurança. Revista Pesquisa Fapesp
Com menos chuva ou chuvas irregulares, a produção das hidrelétricas cai, e o setor acaba recorrendo a termelétricas para compensar, elevando os custos e gerando instabilidade.
2. Cortes de geração (curtailment) e insegurança para investidores
O setor também sofre com o que se chama de “curtailment”: cortes operacionais na geração de energia por razões de infraestrutura ou falta de demanda em certos horários. Isso afeta particularmente as fontes renováveis, como solar e eólica, que dependem de um sistema de transmissão bem dimensionado para escoar sua produção. InfoMoney+2Poder360+2
Esses cortes trazem prejuízos financeiros para geradores, aumentam a judicialização entre empresas e reguladores e geram desincentivo a novos investimentos em geração limpa.
3. Gargalos na rede de transmissão
Mesmo com expansão da geração renovável, especialmente no Nordeste, a transmissão de energia ainda é limitada. A rede nacional não consegue entregar toda a energia gerada para regiões de alta demanda devido à falta de linhas ou à capacidade insuficiente. Reuters
Isso cria um desequilíbrio: há potencial para gerar muito mais energia limpa, mas estruturalmente nem sempre é possível transportar tudo até onde é necessário. Resultado: parte da energia é limitada, o que aumenta o risco e o custo para o sistema.
4. Modelo tarifário e encargos setoriais distorcidos
A conta de luz paga pelo consumidor combina vários elementos que nem sempre refletem a realidade da geração e do consumo. Encargos setoriais, subsídios e tributos pesam muito, e essa estrutura tarifária complexa dificulta que os riscos sejam absorvidos de forma mais eficiente. Portal da Câmara dos Deputados
Além disso, há discussão sobre a necessidade de uma “lei de responsabilidade tarifária”: a agência reguladora destaca que alguns subsídios não fazem mais sentido e que o custo se tornou muito alto para os consumidores. VEJA
5. Falta de reforma estrutural
Apesar de alertas recorrentes, reformas profundas no setor elétrico têm sido lentas ou incompletas. As propostas muitas vezes esbarram em interesses contrapostos, falta de consenso regulatório ou resistência de agentes acostumados com o modelo atual. O Globo
Esse atraso impede que o setor evolua para uma estrutura mais resiliente, capaz de lidar com os riscos climáticos, operacionais e econômicos de forma sustentável.
6. Supervisão regulatória limitada
A agência reguladora (Aneel) e o operador nacional do sistema (ONS) têm papel central na estabilidade do setor. Mas a falta de orçamento adequado ou recursos para inspeção e planejamento estratégico pode comprometer a efetividade das ações preventivas.
Além disso, há pressão para que os riscos como o curtailment sejam tratados como “risco do investidor”, o que gera menos incentivo para que o setor todo, coletivamente, enfrente o problema de forma sistêmica. Gesel
Consequências desse mau gerenciamento
- Tarifas elevadas para os consumidores: mesmo com oferta de energia, os custos setoriais podem continuar altos e serem repassados para a população. InvestNews
- Desestímulo a investimentos: incertezas operacionais e regulatórias fazem com que investidores em geração renovável sejam mais cautelosos.
- Riscos de apagões ou uso intensificado de geração térmica: em momentos críticos, a combinação entre baixa hidrologia e limitação de transmissão pode forçar o uso de usinas caras e menos sustentáveis.
- Injustiça tarifária: consumidores podem arcar com riscos que não escolheram, como compensar cortes ou encargos que beneficiam determinadas fontes ou agentes.
Por que é tão difícil resolver?
Resolver esses problemas exige ações coordenadas e profundas:
- Reformas regulatórias que modernizem o modelo de tarifa e responsabilidades.
- Investimentos massivos em transmissão para escoar energia das regiões produtivas.
- Melhoria no planejamento climático, com revisão da garantia física das hidrelétricas e estratégias para lidar com secas.
- Mecanismos claros para distribuir riscos entre investidores, geradores e consumidores, reduzindo litígios e incentivos perversos.
- Fortalecimento institucional da regulação para garantir fiscalização, planejamento de longo prazo e adaptação à nova matriz energética.
Conclusão
O setor elétrico não consegue lidar bem com seus riscos porque seus desafios são sistêmicos: vão da regulação à operação, do planejamento climático à infraestrutura. A combinação de interesses econômicos, limitações técnicas e fragilidade institucional tem travado a implementação de soluções estruturais.
Se não houver mudanças urgentes e coordenadas, esses riscos continuarão pesando sobre as contas de luz, sobre a viabilidade de novas fontes renováveis e sobre a segurança energética do país. Reformar o setor elétrico, portanto, não é apenas uma questão técnica: é uma prioridade estratégica para o Brasil.

