Apenas um processo foi autorizado contra parlamentar durante mais de uma década de proteção institucional na Câmara
Ao longo de mais de treze anos, o funcionamento da Câmara dos Deputados em relação à responsabilização de seus próprios membros tem sido marcado por uma estrutura que, na prática, atua como uma barreira quase intransponível contra o avanço de processos judiciais. Durante esse período, apenas um único processo contra um deputado foi autorizado pela Casa, revelando uma realidade institucional em que a proteção política prevalece sobre o enfrentamento de condutas questionáveis.
Essa postura de autoproteção institucional levanta uma série de questionamentos sobre os limites da imunidade parlamentar e os mecanismos internos de fiscalização e ética. Embora a Constituição Federal garanta aos deputados certas prerrogativas — como a imunidade por opiniões, palavras e votos —, ela não isenta os parlamentares de responder por crimes comuns ou por envolvimento em esquemas de corrupção, desvios de verbas públicas ou outros atos ilícitos. No entanto, o que se tem observado ao longo dos anos é um padrão de resistência por parte da Câmara em permitir que investigações externas prossigam contra seus membros.
Desde 2010, inúmeros pedidos de abertura de processos contra deputados chegaram à Câmara, muitos deles com farta documentação apresentada por órgãos como o Ministério Público, a Polícia Federal e o Supremo Tribunal Federal. Contudo, a maioria dessas solicitações foi arquivada ou teve sua tramitação travada em comissões internas, principalmente no Conselho de Ética e na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). A morosidade dos trâmites, somada a decisões políticas e acordos de bastidores, contribuiu para consolidar uma cultura de impunidade no Legislativo federal.
O único caso em que houve autorização para abertura de processo nesse período foi resultado de uma forte pressão da opinião pública, da imprensa e de setores do Judiciário. Mesmo assim, esse episódio foi tratado como exceção — e não como um sinal de mudança na postura institucional da Câmara. Na maioria das vezes, os parlamentares se mobilizam para proteger seus colegas, muitas vezes sob o argumento de preservar a independência do Legislativo e evitar perseguições políticas. Esse discurso, no entanto, frequentemente esconde interesses corporativos e alianças partidárias que se sobrepõem ao interesse público.
Especialistas em direito constitucional e cientistas políticos apontam que essa blindagem sistemática enfraquece a democracia e mina a confiança da população nas instituições. A percepção de que deputados gozam de privilégios e estão acima da lei contribui para o descrédito generalizado da classe política, alimentando o sentimento de injustiça entre os cidadãos que, por muito menos, enfrentam o rigor da lei. O contraste entre a rapidez com que o sistema penal age contra a população comum e a lentidão quando se trata de autoridades eleitas é um dos principais fatores de insatisfação popular com o funcionamento do Estado.
Outro elemento importante a ser analisado é o papel das lideranças partidárias e das cúpulas das legendas dentro da Câmara. Muitos pedidos de abertura de processo sequer chegam ao plenário, sendo bloqueados nos estágios iniciais por decisão de presidentes de comissões ou líderes partidários. Esse controle político sobre os mecanismos de responsabilização contribui para manter uma cultura de impunidade e enfraquece os instrumentos de fiscalização que deveriam funcionar de forma independente.
Além disso, o funcionamento do Conselho de Ética da Câmara tem sido alvo de críticas constantes. Em vários momentos, o colegiado teve seus trabalhos paralisados, enfrentou disputas internas, boicotes e manobras regimentais que impedem o avanço de processos disciplinares. A falta de transparência em alguns procedimentos e a ausência de punições efetivas alimentam a percepção de que a Câmara é, na prática, um espaço onde irregularidades são toleradas, desde que envolvam aliados ou figuras influentes.
Essa blindagem contínua dos parlamentares também impacta negativamente o funcionamento do sistema de freios e contrapesos entre os Poderes. Quando o Legislativo se recusa a colaborar com investigações judiciais ou a autorizar ações penais, ele compromete o equilíbrio institucional previsto na Constituição, enfraquecendo a atuação do Judiciário e do Ministério Público.
Apesar das críticas e da crescente cobrança da sociedade civil por mais transparência e rigor, pouco tem sido feito para reformar os mecanismos de responsabilização interna na Câmara. Propostas para fortalecer os conselhos de ética, acelerar os trâmites e reduzir a influência política sobre processos disciplinares seguem engavetadas ou enfrentam forte resistência por parte da maioria dos parlamentares.
Enquanto isso, a impunidade continua sendo a regra, e não a exceção. O fato de apenas um processo ter sido autorizado ao longo de mais de uma década expõe de forma contundente a fragilidade do sistema de controle interno da Câmara dos Deputados. Essa realidade aprofunda o abismo entre representantes e representados, alimentando o cinismo e a descrença em relação à política e às instituições.
Caso o Congresso não promova mudanças significativas nesse cenário, o risco é que a cultura da blindagem continue prevalecendo, impedindo avanços no combate à corrupção, à má gestão dos recursos públicos e ao abuso de poder por parte de quem deveria zelar pelo bem coletivo. A legitimidade do Legislativo, em uma democracia, depende diretamente de sua disposição em prestar contas, reconhecer falhas e permitir que a justiça atue com independência — sem favorecimentos, sem manobras e sem escudos políticos.