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Corpo de pianista brasileiro desaparecido na ditadura argentina é identificado após quase meio século

Quem foi Francisco Tenório Cerqueira Jr.

Conhecido como Tenório Jr., Francisco Tenório Cerqueira Jr. era pianista carioca nascido em julho de 1940, com passagem destacada na música instrumental brasileira e nas cenas de samba-jazz e bossa nova. Ele acompanhava artistas como Vinicius de Moraes e Toquinho numa turnê pela América do Sul em 1976, quando desapareceu em Buenos Aires, na madrugada de 18 de março, após sair do Hotel Normandie. Ele era casado, deixando esposa grávida de seu quinto filho.

O desaparecimento e o silêncio que se seguiu

Na noite em que sumiu, Tenório Jr. deixou o hotel para comprar algo ou remédio e nunca mais foi visto. Naquela época, a Argentina vivia um período de tensão política crescente, às vésperas de uma ruptura que desembocaria numa ditadura militar. O desaparecimento dele ocorreu poucos dias antes de um golpe que derrubaria a presidente María Estela Martínez de Perón, intensificando perseguições políticas, torturas e casos de pessoas desaparecidas.

O corpo de Tenório Jr. foi encontrado em 20 de março de 1976 num terreno baldio na periferia de Buenos Aires, na localidade de Tigre, e enterrado como indigente, sem identificação, num cemitério de Benavídez. Foi catalogado como cadáver masculino número 46.927. Com o passar dos anos, o caso se transformou em um símbolo da impunidade e do ocultamento frequente de vítimas civis que não participavam necessariamente de ações políticas abertas, mas foram pegos no fogo cruzado da repressão.

Identificação: perícia, justiça e memória

Quase cinquenta anos depois, a identificação veio através da Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF), em colaboração com a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos do Brasil. O método usado foi a datiloscopia — comparação das impressões digitais arquivadas de um cadáver que não tinha identidade com registros brasileiros — o que permitiu confirmar que se tratava de Tenório Jr.

A descoberta não apenas encerra um capítulo de incerteza para sua família, mas também reafirma o compromisso com justiça transnacional em casos de violações de direitos humanos. O Brasil, por meio de sua embaixada e de comissões oficiais, foi informado e vai prestar toda assistência aos descendentes do músico para regularizar sua morte, emitir certidão de óbito oficial e trabalhar para que a memória dele seja reconhecida.

Dimensões culturais e simbólicas

Tenório Jr. era um músico talentoso com reconhecimento no meio da MPB instrumental, famoso por discos e por colaborações com nomes relevantes como Vinicius de Moraes, Toquinho, artistas de samba-jazz. Sua obra foi ofuscada pelo desaparecimento. Sua ausência inspirou poemas (como de Vinicius), músicas e até produções artísticas que mantiveram viva a ideia de que sua memória precisava ser resgatada.

Sua identificação reacende discussões sobre artistas desaparecidos ou silenciados em regimes autoritários, o papel da arte como resistência e a importância de que a cultura também seja espaço de memória — não apenas dos que bradavam manifestações públicas, mas de todos aqueles cujo desaparecimento foi ignorado ou mantido em esquecimento.

Reações, responsabilizações e legado

Para a família, o momento é de alívio misturado com dor tardia. Muitos filhos, filhas e pessoas próximas viviam há décadas sem ter confirmação oficial de seu destino, vivendo uma espera silenciosa. A confirmação oficial permite atos simbólicos: sepultamento digno, reconhecimento público, bibliografia e coleções culturais integrando sua história.

Do ponto de vista institucional, abre expectativas de que casos antigos de desaparecimento sejam investigados com mais rigor. A justiça argentina e brasileira devem avaliar implicações legais de crimes cometidos na ditadura: assassinato, desaparecimento forçado, sepultamento clandestino. Embora passarão muitos anos sem punições para muitos envolvidos, a identificação reforça que o tempo não apaga obrigações de memória e responsabilização.

O contexto mais amplo

O caso de Tenório Jr. está inserido no processo de reparação histórica das vítimas da Operação Condor, aliança repressiva entre juntas militares da América Latina nos anos 70 e início dos 80. A descoberta dele enfatiza como regimes autoritários ignoravam direitos humanos elementares, como o direito à identificação dos mortos e desaparecidos. Também evidencia a importância de instituições forenses, cooperação internacional e persistência de familiares para trazer luz a casos que pareciam irreparáveis.

O que ainda falta e os próximos passos

Embora o corpo tenha sido identificado, há passos que ainda demandam ação:

  • Possível exumação do corpo no cemitério para coleta de amostra genética, a fim de confirmar de forma definitiva sua identidade caso haja material remanescente.
  • Emissão de certidão de óbito pelo Brasil, que regularize legalmente sua morte e permita sua lembrança em arquivos públicos e memoriais.
  • Políticas públicas ou homenagens oficiais que reconheçam seu legado artístico e sua condição de vítima da repressão.
  • Investigação sobre responsáveis pelo desaparecimento, especialmente agentes estatais argentinos de segurança e eventuais conivências de instituições.

Significado para o Brasil hoje

Essa identificação ressoa num momento em que a memória das ditaduras na América Latina volta a ganhar atenção, especialmente frente a discursos revisionistas ou de minimização de horrores passados. Revela a importância de não deixar para trás histórias de pessoas comuns, não militantes, cujo desaparecimento expôs falhas humanas e institucionais.

Para o país, Tenório Jr. deixa de ser apenas um nome de desaparecido político: volta a ser membro reconhecido da história cultural brasileira. Sua música pode ressoar mais forte agora, seu desaparecimento e sua trajetória se tornarão parte das narrativas escolares, culturais e de memória nacional.

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